quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Circular de cordão ou cordão enrolado no pescoço


Por Ricardo Herbert Jones – Médico Obstetra e Homeopata / Porto Alegre – RS
Minha experiência com circulares de cordão é razoável. Muitas pacientes me procuravam com medo de uma cesariana porque o seu médico falava que o cordão esta enrolado no pescoço, portanto uma cesariana era mandatária, sob pena do nenê entrar em sofrimento.
Circulares de cordão são banalidades na nossa espécie. Um número muito grande de crianças nasce assim. Eu tinha a informação que a incidência era de 30%, mas talvez seja um número antigo ou inadequado. De qualquer sorte, uma quantia considerável de crianças vem ao mundo desta forma. Já tive partos com 3 voltas bem firmes no pescoço, e com apgar 9/10.
É engraçado ver a expressão das pacientes quando conto pra elas que o que me preocupa não é o pescoço, mas o cordão. O fato do pescoço estar sendo pressionado é pouco importante se comparado com a compressão do cordão. A fantasia da imensa maioria das mulheres (mas também dos homens) é que a criança está se “”enforcando”" no cordão. Elas ficam surpresas quando explico que o bebê não está respirando, então porque o medo da asfixia? Acontece que existe espaço suficiente para o sangue transitar pela estrutura do cordão, protegida pela geléia de Warthon que o recobre, mesmo com voltas em torno do pescocinho. Além disso, se houver uma diminuição na taxa de passagem de oxigênio pelo cordão isso será percebido pela avaliação intermitente durante o trabalho de parto. E esse evento NUNCA é abrupto. DIPs de cordão, como os chamamos, ficam dando avisos durante horas, e são diminuições fortes apenas durante as contrações, com o retorno para um batimento normal logo após. Marcar uma cesariana por um cordão enrolado no pescoço é um erro.
Sei como é simples e fácil apavorar uma mãe fragilizada contando histórias macabras a esse respeito, mas a verdade é que não se justifica nenhuma conduta intervencionista em virtude deste achado. Por outro lado, a presença deste diagnóstico tão disseminado nos consultórios e nas conversas entre pacientes nos chama a atenção porque, se não é um problema médico, é uma questão sociológica.
Esse exame parece funcionar como um acordo subliminar entre dois personagens escondidos no inconsciente dos participantes da trama, médico e paciente.

De um lado temos uma paciente amedrontada, desempoderada diante de uma tarefa que parece ser muito maior do que ela. Acredita piamente no que o “”representante do patriarcado”" (no dizer de Max) lhe diz. Não retruca, não critica; sequer pergunta. Nada sabe, mas precisa do auxílio daquele que detém um saber fundamental aos seus olhos. Diante das incertezas, da culpa, do medo e da angústia ela se entrega, aliena-se. Fecha os olhos e coloca o “anel”, que faz com que ela mesma desapareça, entregando-se docilmente aos desígnios dos que detém o poder sobre seu destino. Oferece seu corpo para que dele se faça o que for necessário.
Na outra ponta está o médico. Sofre em silêncio a dor da sua incapacidade. Pensa baixinho para que ninguém leia seus pensamentos. Sabe que pouco sabe, mas também tem plena noção do valor cultural que desempenha. Nada entende do milagre do nascimento, mas percebe seus rituais, muitas vezes ridículos, outras vezes absurdos e perigosos, produzem uma espécie de tranquilização nas mulheres. Não se encoraja a parar de encenar, porque teme que não lhe entendam. Continua então repetindo mentiras, esperando que não descubram o quão falsas e frágeis elas são. É muitas vezes tomado pelo “”pânico consciencial”", que é o medo diante de uma tomada de consciência.Muitas vezes age como um sacerdote primitivo que, por uma iluminação divina ou por conhecimento adquirido, percebeu que suas rezas e ritos de nada influenciam as colheitas, e que o que governa estes fenômenos está muito além de suas capacidades. Entretanto, sabe que os nativos precisam dos rituais, que ele percebe agora como inúteis, porque assim se dissemina a confiança e a esperança. Mente, mas de uma forma tão brilhante, sofisticada e tecnológica, que deveras acredita no engodo que produz.
Ambos, mulher e médico, precisam aliviar suas angústias diante de algo poderoso, imprevisível e incontrolável. Olham-se e tramam o golpe.
O plano que deixará ambos aliviados diante do enfrentamento. Mentem-se com os olhos. Eu finjo saber; você finge acreditar. Peço os exames. Todos. E mais um pouco. Procuro até encontrar aquilo que nos fornecerá a chave. A minúscula desculpa. Eu, com ela nas mãos, posso realizar os rituais que me desafogam da necessidade de suportar a angústia de olhar e nada fazer. Você, poderá escapar da dor de aguardar e fazer o trabalho por si. Poderá dizer que “”tentou”", mas, foi melhor assim. O nenê poderia correr perigo. O cordão poderia deixar meu filho com problemas mentais, etc.
Feito. Pedido o exame, lá estava: O cordão, mas poderia ser o líquido, a posição, a placenta, a ossatura, as parafusetas protodiastólicas. Quem se importa? O carneiro, a virgem, o milho, todos são sacrificados. Quem se importa? Livramo-nos da dor. Anestesiamos nossas fragilidades e angústias. Ritualizamos, encenamos e todos acreditam.
Nem todos! Alguns acordam, mesmo que leve muito, muito tempo.

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